PARECE QUE FOI ONTEM


[O texto a seguir foi publicado originalmente no box que reuniu toda a Série Iconoclássicos em DVD, lançado em 2012 pelo Instituto Itaú Cultural]


Não saberia dizer como começou a conversa. Mas ele estava ali do meu lado, em pé com seus cabelos rastafari, uma roupa surpreendentemente discreta. Já me acostumei com seus óculos escuros, que não me parecem mais tão extravagantes. Mas, por algum fenômeno, conseguia ver, através deles, os seus olhos. E eles me observavam com atenção calma e grave, em silêncio. Como se a conversa já tivesse sido longa, eu perguntei: – “mas, Itamar, o que você quer dizer afinal?”. A pausa que se seguiu foi extensa – eloquente demais – e eu acabei acordando sem saber a resposta. Já era a manhã do dia 05 de julho de 2011. Logo mais à noite, em seis salas lotadas no Arteplex Unibanco Frei Caneca, “Daquele Instante em Diante” seria finalmente lançado e entraria em cartaz na sexta-feira seguinte.

Essa talvez tenha sido a grande questão com a qual me envolvi ao longo dos quase três anos que me separavam de um certo dia em 2008 quando, ainda incrédulo, desliguei o telefone. Do outro lado da linha, uns poucos minutos antes, Roberto Moreira S. Cruz havia me feito o convite sem rodeios: vamos fazer um documentário sobre Itamar Assumpção?

Vejamos: Itamar Assumpção foi um furacão que marcou a música popular brasileira nas últimas décadas do século XX e se foi em 2003 aos 53 anos de idade, vítima de câncer. Deixou atrás de si uma obra colossal e avassaladora, cuidadosamente construída literalmente às suas próprias custas (não por acaso, título de um de seus discos), quase uma guerrilha, lutando para gravar seus discos da forma possível, totalmente à revelia da chamada “indústria cultural”. Sua vida foi marcada por uma intransigente e inabalável busca por coerência e integridade, o que acabou lhe custando o rótulo de “maldito”. Não deu outra: minha primeira sensação diante daquele telefonema foi a de total assombro. Reconstruir em um filme uma personagem desta magnitude era uma tarefa que me deixou por meses andando em círculos.

No princípio, eu fiquei ali perseguindo idéias de dispositivos e estratégias para construir um documentário num “modo seguro”. Diante do tamanho do Itamar que ia surgindo na minha frente, estas “sacadas” mais me pareceram uma busca imatura por uma “linguagem moderna”, um sinal de auto-afirmação bem ingênuo. Itamar era muito maior. E diante do que ele fez, qualquer tentativa de tradução que fosse contaminada pelo desejo de “autoria” soava como um tremendo desrespeito a uma obra gigantesca e multifacetada que agora vai tomando seu lugar. Foi só quando me voltei a ele e comecei a perseguir sua voz em primeira pessoa é que ficou nítido que eu tinha que ter, antes de mais nada, um compromisso com o resgate desse artista genial. Não haveria saída: tinha que correr o risco de um mergulho desarmado em seu universo, me deixar levar pela intuição, pelo espanto, pelas descobertas, sem roteiro ou idéias pré-concebidas. Ele me conduziria. De alguma maneira.

O fato é que aquelas questões formais da primeira hora íam se transformando e encontrando novas respostas. Foi-se descortinando um Itamar que chegou até aqui em fragmentos bem dispersos: foi guardado nas memórias (com todas as contradições possíveis) e pelos cantos das casas de seus amigos, no fundo das gavetas, pregado em ímãs nas portas das geladeiras, espalhado em pilhas de fitas cassetes, em caixas, arquivos, cartazes, filipetas, fotografias, porta-retratos, xerox, recortes de jornais, anotações, desenhos, cadernos, pastas, bilhetes, long-plays de vinil. A profusão de formatos pediam uma cuidado no seu resgate histórico. Achei importante mantê-los com a cara de seu tempo (as fitas magnéticas e seus drop-outs, os chiados analógicos, os grãos esmaecidos – fizemos questão de preservar as janelas originais dos materiais em vídeo). O trabalho de restauração de sons e imagens (compilados de mais de 150 horas de arquivo) seguiam apenas até o ponto de torná-los mais inteligíveis, nunca de torná-los limpos, ascépticos, desprovidos de sua rudeza original. E mesmo o registro de imagens novas vieram carregadas com o tom da urgência, da mistura: ora eram feitos na forma de fotografias sequenciais e depois animadas, ora com o suporte de formatos digitais HD extremamente portáteis. Fazer um retrato de Itamar Assumpção passou a ser uma colagem destes fragmentos, o tempo todo tão sincera quanto possível. O tempo todo procurando ouví-lo nas sincronias, nas coincidências, nos detalhes. E estavávamos fazendo da forma mais livre, seguindo os acontecimentos. Acho que o Itamar iria querer que fosse assim.

“Mas, Itamar ... o que você queria dizer afinal?” Naquela manhã de julho, perguntava naquele sonho com a nítida sensação de que eu seria, por fugazes segundos, um porta-voz diante das platéias que se seguiriam. Para ser bem honesto, não soube e não sei a resposta – que, afinal, devem ser muitas diante de sua arte tão inusitada quanto contundente. Mas ao indagá-la milhões de vezes, meses a fio, não passei incólume pelo processo. Ao perseguir Itamar Assumpção, me surpreendi perseguindo a mim mesmo, conhecendo e dissolvendo os meus limites diante da exposição radioativa à sua coerência. Fazer este filme foi um marco em minha vida. No fundo, acho agora que era isso mesmo: a mim coube fazer perguntas (muitas a mim mesmo). E através delas, de alguma forma, Itamar se colocou em movimento. Eu me sinto muito honrado por isso. E extremamente agradecido.


Rogério Velloso


[Não se faz um filme sozinho. E fazer “Daquele Instante em Diante” foi um processo rico tocado por muitas pessoas. Foi fundamental a participação do George Queiroz, que colocou ordem no caos e propôs a estrutura do filme, do Maurício Pereira, ajudando a mapear a cena paulistana de vanguarda e que, junto com a Carol Dantas (grande parceira e produtora executiva do projeto), do Roberto Moreira S. Cruz, do Edson Natale e do Hélcio Alemão Nagamine foram interlocutores criativos imprescindíveis, da Solange Santos, que pesquisou e reuniu todo o material de arquivo, da Mariana Fagundes, que fez minha assistência e organizou a decupagem, do Paulo Mendel que mergulhou nos acervos iniciais e depois na montagem com o George e comigo, do Serginho Fouad na edição de som e do Clement Zular no trato sonoro, do Francisco Mosquera e sua paciência de monge na (re)montagem online, da turma da CinePro/DOT que trouxe o filme para a tela grande, do Paulo Dantas e da equipe da Movieart, que nos permitiu ter fôlego (!),  e do Eduardo Saron e da equipe do Instituto Itaú Cultural, arquitetos deste projeto essencial, a Série “Iconoclássicos”. Preciosíssima e um tremendo privilégio foi a cumplicidade da família Assumpção, que nos alimentou o tempo todo com sua confiança. A eles e a todos os que carinhosamente dividiram suas memórias conosco, agradeço. RV ].
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