Por Ubiratan Brasil
O Estado de S. Paulo  |  24 Julho 2015  |
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“Todos nós saímos do Capote de Gogol”,

afirmou, certa vez, o escritor russo

Fiodor Dostoievski

(1821-1881). Ele se referia ao conto O Capote, de

Nikolai Gogol

(1809-1852), que teve um papel de destaque no desenvolvimento da literatura russa a partir do século 19 por causa de seu cunho social. A forma como ele trata a relação entre a condição humana e as imposições da sociedade sempre fascinou o ator Rodolfo Vaz que, depois de contagiar uma legião de amigos com sua disposição de levar a história para o palco, estreia nesta sexta-feira, 24, O Capote, no Centro Cultural Banco do Brasil.

Trata-se de uma versão com toques modernos do clássico texto escrito em 1842. Vaz interpreta Akaki Akakievitch, escrevente de uma repartição pública de São Petersburgo que precisa se submeter a severas restrições a fim de conseguir economizar dinheiro para comprar um novo capote. Ao longo do doloroso processo de privação, ele é assediado por dois homens (Rodrigo Fregnan e Marcelo Villas Boas), que explicitam os vícios e abusos do interior de sua alma, humilhada e atravancada por emoções contraditórias.

“A ironia do texto original migra para os narradores”,

conta a diretora Yara de Novaes, que já trabalhou antes com a obra de Gogol, em O Inspetor Geral. “Eles trazem a voz do nosso tempo.” A decisão de incluir novos personagens modificou uma possibilidade de a peça ser um monólogo, em versão criada por Drauzio Varella. A aproximação do médico e escritor ao projeto começou há, pelo menos, seis anos.

Na época, Vaz participava da peça Por Um Fio, inspirada em obra de Varella e também interpretada por Regina Braga. “Certa noite, durante um jantar, comentei com ele meu desejo de montar um espetáculo inspirado no conto Capote”, conta o ator. “Ele não pensou duas vezes e disse: ‘vou adaptá-lo para você’.” Na data combinada, Vaz recebeu o presente: o dilema vivido por Akaki, um dos pilares do realismo russo do século 19, foi habilmente transformado em um monólogo.

Mesmo feliz com o trabalho, o ator não conseguiu dar início no projeto. O tempo passou e, ao surgir a oportunidade de montar no Centro Cultural Banco do Brasil, a ideia ganhou força. “Quando um artista escolhe esse ou aquele texto para uma adaptação teatral, a escolha se dá primeiro porque aquela obra gera grande prazer estético e filosófico e também porque ela tem a vocação para ser matriz de um processo muito livre e amplo de criação teatral. Um processo que, do começo ao fim, terá os genes daqueles artistas que compõem o coletivo teatral”, comenta Rodolfo Vaz.

Ele se uniu aos colegas Rodrigo Fregnan e Marcelo Villas Boas, além da diretora Yara de Novaes. Juntos, decidiram que o texto incorporaria mais personagens – na verdade, narradores que fizessem a passagem temporal entre o século 19 e os dias atuais. Assim, seria preciso adaptar o texto de Drauzio Varella, o que foi feito por Cássio Pires. “Além dessa atualização, o projeto incluiria também uma musicista que se apresentaria ao vivo e projeções de vídeos”, conta Pires. “Como grande admirador da obra de Gogol, não poderia desvirtuá-la. Assim, propus transferir o problema de Akaki para os dias de hoje, ou seja, manter a narrativa sob o olhar arguto e sensível de Gogol, mas com uma ambientação moderna.”



Para que a coerência fosse mantida, sem que a união de passado e presente causasse estranheza, o grupo iniciou um precioso trabalho de imersão, simpaticamente chamado de

Vestindo o Capote

– o início dos ensaios coincidiu com uma série de encontros com quatro estudiosos de áreas distintas, dispostos a falar sobre o conto e sua forma satírica de retratar a Rússia do século 19.

A professora e pesquisadora russa Elena Vássina comentou o texto com foco nas referências escolhidas por Gogol, elementos escolhidos por ele para a narrativa; já o filósofo Mario Sergio Cortella caminhou para uma discussão mais filosófica, passando por conceitos etimológicos; enquanto o teatrólogo Fernando Bonassi trouxe provocações para o aspecto dramatúrgico; e, por fim, a diretora Cristiane Paoli Quito trabalhou com os atores uma visão física do texto, no corpo dos intérpretes.

“Ela ajudou muito na composição clownesca do personagem do Rodrigo e sua dificuldade de relacionamento com seu entorno”, explica Yara. “Essa fase do processo trouxe uma certeza sobre a montagem: Akaki não é um sujeito que conta a própria história, os outros não permitem isso, a identidade do Akaki é dita por outros, foi essa descoberta que nos levou a inserir os dois narradores.”

Para Cássio Pires, os encontros permitiram ainda definir a relação de poder e submissão que se estabelece entre Akaki e seus dois colegas que, na verdade, podem ser vozes martelando sua consciência. “O que me atrai no texto de Gogol é o ponto de vista do narrador, ou seja, alguém do interior questionando a cidade grande”, diz o dramaturgo. “E que os narradores fazem com Akaki seria hoje interpretado como bullying”, completa Rodrigo Fregnan.

De fato, o texto de Gogol sobre uma pessoa comum desponta como uma meditação sobre a identidade e estabelece uma espécie de diálogo subterrâneo entre o romance moderno e a subjetividade. Essa relação é acentuada pela videoarte projetada em cena e criada por Rogério Velloso e a música criada por Dr Morris e interpretada também ao vivo por Sarah Assis. “A história pode ser desdobrada de várias formas”, observa Velloso, que recebe um aval de Yara de Novaes. “O que realmente me interessa são as várias instâncias narrativas aqui reunidas: teatro, vídeo, música, cenário.”

QUEM É NIKOLAI GOGOL


Escritor
Nasceu em 1809 em uma região hoje ocupada pela Ucrânia. Construiu obra fundada no realismo, com toques até surrealistas. É autor de O Nariz, O Capote, O Inspetor Geral, Taras Bulba e O Diário de um Louco. Morreu em 1852.





























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